A chuva deitou-se desabrida no chão
da tarde como uma cadela a quem mataram os filhos.
E um leite envenenado corre das suas tetas.
Como setas.
As portas batem surdas nos ouvidos
e os corpos não resistem aos seus lamentos de água.
É o que dizem as testemunhas
De Jeová
ou de outro qualquer deus mais afeiçoado
à leveza da alma.
Parecem tiritar todas as cancelas
que protegem o mundo de uma loucura molhada.
Não há tempo a perder neste comboio
que brilha na distância
com o olho infectado pelo naufrágio.
As minhas mãos estão secas.
Mas os lábios correm à deriva na tumultuosa
corrente das palavras,
de fala em fala, em busca de um lugar
de sombra, fugindo ao pesadelo.
Não sei deter esta água da miséria
que a tarde me deita na chávena de chá de uma sala de mortos
ou me dá de presente inútil numa biblioteca.
Mas já o telefone jorra lama dos mínimos buracos
e a voz amiga afoga-se
nas lágrimas.
E eu nem sou dique, nem parede, nem barco,
um corpo mais à tona no vidro do uísque
na transparente solidão que não perdoa:
nem mesmo o álcool me impede este dilúvio.