nasci gémeo. o meu irmão falso
morreu quase à nascença. formei a personalidade
como a memória da metade que me falta.
é o meu irmão que à noite se contorce a coreografar
a comédia dos enganos, num processo de transferência
que se desenvolveu com um
movimento duplo: um
sentido crítico demasiado apurado e um
distanciamento em relação a mim próprio enquanto
personagem sem vontade das narrativas que criei.
em resumo, um catolicismo pessoal, com
ciclos consecutivos de culpa, arrependimento e absolvição.
quando me encontraste na rua, por mero acaso,
tinha acabado de entrar na terceira fase.
sentia-me bem, após várias semanas a perseguir
insectos pelas águas-furtadas da consciência.
podia ter ficado a conversar contigo mais
tempo que o necessário
para te contar que já não preciso que entregues
em casa o que resta de mim, porque vai
sobrando muito pouco e
porque
a minha história foi contada muitas vezes:
parto para me encontrar
perdido, entre olhos claros e um café
bebido na rua a caminho do trabalho, a saber
de que tudo isto são brincadeiras muito
perigosas: a vida ou continuar a escrever em jejum
a autópsia do afogado, nos dias submersos,
até aprender a respirar debaixo de água,
o que ainda deverá levar