It was my mother who taught me to fear vagrant things or the injustice of stones’ lives – so lifeless! Stray animals that die on the roadside – no: they die on the road, I don’t know who moves them to the side, but that’s where they’re found – a cat, eyes open, one eye hanging out still attached to its cavity – will it see better now, its eye touching the ground? Mother tells me not to look at it; neither me nor the lifeless life of stones’ injustice.
In the distance they’re all stones, I feel like saying, as I come across people and think about their sadness against the streets. Mine are eyes of stone, mother, and therefore people are all grey, granite slabs defying the law of gravity as they walk as stiff as the days when I hear, down below, the church bells and I wonder whether there’ll be in this city enough stone to build a cathedral to a different god.
I’ve walked the roadside looking and closing the eyes of dead cats – I’m still doing it now – and that doesn’t bring me closer to the stones which, I’ve told you so often mother, have a safer life away from us who can see them and think the sadness they cannot feel. If only I could thus stop seeing vagrancy condemned to the streets, I would mimic their life injustice. We have the thinnest skin of all the stones, the rain and the weight of our shoe soles lessen unevenness, turn us into the softest body of this season without even touching us; without anybody touching us. And mother, you know: we’ll only give a good place to cats that die in our arms.
© Translated by Ana Hudson, 2015
Ao longe todos são Pedras
Foi a mãe que me ensinou a ter medo das coisas vadias ou da injustiça da vida das pedras — tão inanimadas! Da bicharada sem dono que morre à margem da estrada — não: morrem na estrada, e não sei quem os põe à margem, mas é cá que os encontro —, um gato de olhos abertos, um caído, as veias, os tendões ligando-o ainda ao corpo — verá melhor agora, com o olho pousado na pedra? A mãe manda-me tapar os olhos para que eu não o veja; nem eu, nem a vida inanimada da injustiça das pedras.
Ao longe todos são pedras, apetece-me dizer-lhe, ao pensar na sua tristeza contra as ruas, quando vejo passarem por mim pessoas. Tenho olhos de pedra, mãe, e por isso todos são cinzentos, lajes de granito que contrariam a lei da gravidade ao caminharem tão verticais como os dias em que ouço, cá em baixo, o sino das igrejas; e me pergunto se haverá pedra suficiente nesta cidade inteira para reconstruir uma catedral a um deus diferente.
Percorri os limites das estradas vendo e tapando os olhos a gatos mortos — ainda hoje o faço —, sem que isso me aproxime das pedras que, tantas vezes lhe disse, mãe, têm a vida certa por viverem longe de nós, que as olhamos e lhes pensamos a tristeza que não sabem ter. Se com isso conseguisse deixar de ver a vadiagem posta na rua, imitar-lhes-ia a injustiça da vida. Temos a pele mais fina das pedras, as chuvadas e os pesos das solas amenizam-nos as irregularidades, fazem de nós o corpo mais macio desta estação sem que nos toquem; sem que alguém nos toque. E mãe, a mãezinha sabe: só daremos bom espaço aos gatos que nos morram nos braços.
in É quase noite, 2013