or Dialogues with Sophia I
The song that cuts the throat
Muse teach me the song
that cuts my throat
I
Teach me to twist the tongue.
But not so suddenly.
I need this dust and wind
(and not only to be scratched)
Teach me the leisure of the tongue
which is no stranger to the strange saliva
slits or the breath whistle
in the whispered curves
of greyness, to the severity
of flat objects in the dark chambers
of my lucidity. Eager,
mundane.
The incalculable, mostly.
The hangover after being so close
to the present, after having my temples
so inward looking.
Or whatever this might be.
Teach me the song that uncomfortably
bends the tongue’s excitement.
A sure way to hasten
the reticence of what is to come.
Teach me this chewing
this muscle-waving
and eventually refine
the bitter spit I generate.
Rehearsals.
For training the urgency.
I’ll save my teeth for other tasks,
Other verbs, less narrow meanings.
Teach me a language
That scratches.
That’s all.
Like somersaults on the tarmac:
Jolly, although necessary.
Even more: that scratches the scratch itself.
A language
as that which is spoken by man
sometimes unknowingly
(My knowing and not knowing it
simultaneously)
Teach me how a language is spat
By those who countless times have
spat out beauty, because it was faintly implacable.
Just as those who’ve been taught
that the hours which thus
softly strike certainties
tie us to this soil
and that this is the only song.
All of them who whistle with pursed
lips have another obscure song.
Consonants tightened
by a knotted grief and by tenacious
vowels in their indistinct resounding.
An effortful voice
For it comes raw and indecisive
Through the cracks of what’s necessary
– We always come back to it
As we peer through the slits of anger.
I am told that language
belongs to murkiness and dampness.
Or the other way round.
That the poets own
Particularly twisted ones,
Slashed by shadows.
But that’s not it:
Fuck the poets’ tongues.
Its pleats don’t agree with midday.
These days disagree with me
But I insist in licking up their dust.
Teach me to lick up the dust
in another way.
I want the language of all
The afflicted, the clumsy spirals
Of the frantic blade which the world is.
Airy the language in the sun
Twist it under the light
Unhinge it so that it finds
its mismatching speech.
The contrived wriggling
sneaking off through the places
these times have imposed on us.
Teach me how to bend pain
To draw out the body and the embarrassment
Of almost possible gestures
In this language, this buzzed
foretelling of quasi futures.
Teach me, muse, unworkable music
II
I no longer search for the cause
The first – the cause without a cause
– in explosions or sobbing of matter.
I presume the stupid need
For the beginning and the necessary
Contingency for disorder.
I presume purpose with a grimace
I also recognise in others.
With them I assume the wavering means.
We go where the faint
Tremors that humble us
will lead.
That which we still call the future.
Teach me the gasping blow
that twists our tongue.
Sing to me that which holds
the sweetness of breathing.
That which we still call for
And some called the song.
Perhaps mistakenly
But let’s start with error
And let’s take its knots
to our fierce
and possible conclusions.
Let grenades burst
where the throat folds.
With tooth and nail, the breath
still alive of so much dust
and hoarseness. The evidence of the doubt.
All there is which is most splintered.
We, the latent rage that we are,
the daggers soiled with revolts of yore.
Up to the present.
Where to begin except
where its slight leanings
may take us?
My temples go on surviving
The consecutive and necessary massacres of my ego.
The present.
Its gentle tendencies.
Its certainties, its impurities,
its vague messianisms
Its clarities, its closures,
its heavy rhythms.
The obvious is the spot where things are nothing
but the ill disguised ramblings of our waiting.
We are alive, or something like it.
That’s right, we live of dusts.
Brute, abrupt.
Between the terrified tongue and the nebulous temple.
But, nevertheless, alive.
Someone mentioned the necessary impurities.
III
Is it song that
which awakens me to almost life
on the tips so tender that I don’t even know
whether they’re tips of fingers or of dense
fierce fixed
ideas I entertained
while I thus breathed myself in, breathed myself in
and breathedmyselfin
again and again.
That which thus moves me
and scratches me.
I breathed in because breathing out brings
the hooks where in haste
I hang the song.
As it is. What it is. The murmur’s beat.
That Which the song Which thus
made me an instrument with untouchable chords?
Get used to it. And extricate yourself at your peril.
Once I heard a voice being undone.
What has from the other side
thrown me into the shadow?
There are other sounds, winds, exercises
So that chords shudder in silence,
implicit in centres and ends.
I still feel the thread that leads us
from the suspended nails to the prayers.
Neither ecstasy nor furore
or devastation, or anything at all.
Compose, though,
as if they all existed.
Let the wind awake with precarious
tongs the obscure and imperfect
murmur. I spoke.
Let you
wake up. I spoke.
The fierce, oblique mornings,
the future
in chords
of turmoil, anger and clarity.
That is the tangle that interests me.
The mouth that forgot the song
But not the agony that hisses it.
The muse that has forsaken me
But hasn’t abandoned that which will
one day be my deferred lucidity.
The word that pushes the wall
of noise from the inside.
If there were an inside.
If there weren’t only the wind
And the mechanisms of uncertainty.
The song, after all.
Here’s another explanation for my shyness.
Like the wildest song
(for the tone has to be found)
Let them not be in vain,
the sounds and the subsequent verse
wherever they fall.
This is how I hear
what I scarcely perceive
How I fabricate what I scarcely
comprehend
This is how, bit by bit, the world.
Let confusion be
only the beginning
The eye be
the momentum beyond vagueness
The arm be
that which makes the soil
our own, the voice
be like light
and campus.
Humbles prayers, I know,
and uncertain: just that
which ties me to the sounds and that
which your whispered name
throws at me.
Teach to peer into the creaking of my nape.
Teach me all that is more than this.
© Translated by Ana Hudson, 2012
Canções para voz e lâmina,
ou Diálogos com Sophia I
O canto que corta a garganta
Musa ensina-me o canto
Que me corta a garganta
I
Ensina-me a revirar a língua.
Mas não tão subitamente.
Preciso destas poeiras e ventos
(e não só para que me arranhem)
Ensina-me o vagar da língua
que não estranha as estranhas ranhuras
da saliva ou o assobiar do respirar
nos contornos murmurados
do cinzento, a inclemência
dos objectos lisos nas escuras câmaras
da minha lucidez. Sôfregas,
mundanas.
O incalculável, sobretudo.
A ressaca de estar tão rente
ao presente, de ter as têmporas tão
enroscadas em mim.
Ou lá o que é isto.
Ensina-me o canto que verga
incomodamente a excitação da língua.
O que é certamente uma maneira
de apressar a reticência do futuro.
Ensina-me esse mastigar
só com a sua ondulação de músculo
e porventura a refinar
o cuspo azedo que fabrico.
São ensaios.
Para ir treinando a urgência.
Guardarei os dentes para outras tarefas,
Outros verbos, sentidos menos restritos.
Ensina-me uma língua
Que arranhe.
É só isso.
Como cambalhotas no asfalto:
Felizes, ainda que necessárias.
Mais: que arranhe o próprio arranhar.
Uma língua
como a falam os homens
mesmo que nem sempre o saibam
(Que eu o saiba e o não saiba
Ao mesmo tempo)
Como a cospem
Os que vezes sem conta cuspiram
o belo, porque era levemente implacável.
Como aqueles a quem foi ensinado
que as horas que assim
suaves batem as certezas
nos agarram a este solo
e que essa é a única canção.
Todos eles têm outro obscuro
Canto a assobiar entredentes.
Consoantes cerradas
de embaraçada dor e vogais
tenazes no seu indistinto ressoar.
A voz em esforço
Pois passa esfolada e indecisa
Um pouco pelas frinchas do necessário
– A ele voltamos sempre
Ao espreitar pelas nesgas da raiva.
Dizem-me que a língua
pertence ao obscuro e húmido.
Ou vice-versa.
Que os poetas portanto a têm
Particularmente retorcida
E golpejada pelas sombras.
Mas não é isso:
Que se foda a língua dos poetas.
As suas pregas dão-se mal com o meio-dia.
Eu dou-me mal com estes dias
Mas insisto em lhes lamber o pó.
Ensina-me a lamber o pó
de outra maneira.
Quero a língua de todos
Os aflitos, as espirais toscas
Da lâmina desvairada que é o mundo.
Areja-a ao sol,
Contorce-a sob a luz
Desatina-a para que encontre
a fala desencontrada.
O torcer esforçado
que se esgueira pelos lugares
que nos deu este tempo.
Ensina-me a dobrar a dor
A estirar o corpo e o embaraço
Dos gestos quase possíveis
Nesta língua, neste prenúncio
zumbido de quase futuros.
Ensina-me, musa, a música impraticável
II
Já não procuro a causa
Primeira – a causa sem causa
– em explosões ou soluços da matéria.
Presumo a estúpida necessidade
Do início e a contingência
Necessária da desordem.
Presumo os fins com um arreganhar
que reconheço também nos outros.
Assumo com eles os vacilantes meios.
Vamos onde nos levarem
As ligeiras tremuras
que nos inclinam.
Aquilo a que vamos chamando o futuro.
Ensina-me a ofegante pancada
que nos enrosca a língua.
Canta-me o que nos corta
a doçura da respiração.
Aquilo por que vamos chamando
E a que alguns chamaram o canto.
Talvez erradamente.
Mas que se comece pelo erro
E que se levem os seus nós
até às nossas ferozes
e possíveis conclusões.
Que se estilhaçem as granadas
nas pregas da garganta.
Com dentes, unhas, o hálito
ainda vivo de tanta poeira
e rouquidão. Evidência da dúvida.
Tudo o que houver de mais lascado.
Nós, a cólera latente, os punhais
Empoeirados de revoltas de outrora.
Até o presente.
Onde começar senão
Onde nos levarem
as suas ligeiras inclinações.
As minhas têmporas vão sobrevivendo
A sucessivos necessários massacres do ego.
O presente.
As suas leves declinações.
As suas certezas, impurezas,
os seus vagos messianismos
As suas claridades, oclusões,
os seus espessos ritmos.
O óbvio é o lugar onde as coisas já não são
Senão o recitar mal disfarçado da espera.
Vivos, ou coisa assim.
Sim, vivemos de poeiras.
Brutos, abruptos.
Entre a língua apavorada e a têmpora nebulosa.
Mas vivos, ainda assim.
Alguém falou das impurezas necessárias.
III
Será canto o que assim
me acorda quase vivo nas pontas
tão tenras que nem sei
se de dedos ou densas
ferozes fixas
ideias que entretive enquanto
assim me respirava me respirava
e merrespirava
uma e outra vez.
O que assim me comove
e me arranha.
Respirei porque o sopro traz
os ganchos onde prendo
à pressa o canto.
Assim. O que. As pancadas do rumor.
O que o que O canto O que assim
Me fez instrumento de intácteis cordas?
Habitua-te. E desenreda-te como podes.
Ouvi uma vez desfazer-se uma voz.
O que do outro lado me
lançou na sombra?
Há outros sons, ventos e exercícios
Para que tremam as cordas do silêncio,
do centro e dos extremos implícitos.
Sinto ainda o fio que dos ganchos
Do ar nos conduz às preces.
Nem êxtase nem furor
nem devastação, nem nada.
Compõe ainda assim
como se houvesse.
Que o vento acorde o obscuro
e imperfeito rumor com pinças
precárias. Disse.
Que acordes
tu. Disse.
As manhãs ferozes e oblíquas,
o futuro
em acordes
de tumulto e ira e limpidez.
Isso sim, o novelo que me interessa.
A boca que esqueceu o canto
Mas não a agonia que o sibila.
A musa que se esqueceu de mim
Mas não largou o que será um dia
a minha outra vez adiada lucidez.
O verbo que empurra por dentro
as paredes do ruído.
Se houvesse dentro.
Se não houvesse apenas o vento
E os mecanismos do incerto.
Afinal o canto.
Eis outra explicação para a minha timidez.
Qual o canto mais agreste
(pois há que achar o tom)
Que não sejam em vão
os sons e os sucessivos versos
onde caem.
É assim que ouço
o que mal distingo
E fabrico o que tão pouco
entendo
Assim que a pouco e pouco o mundo.
Que o confuso seja
apenas princípio
Que o olho seja
embalo além do vago
Que o braço seja
o que faz nosso
o solo, que a voz
vá servindo de luz
e de compasso.
Preces humildes, eu sei,
e incertas: apenas o que
aos sons me prende e o que
no teu nome sussurrado
me lança.
Ensina-me a espreitar o ranger da nuca.
Ensina-me tudo o que fôr mais que isto.
in Que se diga que vi como a faca corta, 2010